domingo, 29 de março de 2015

A Bela Adormecida

Enquanto ela dormia, nem sempre lhe ficava a velar o sono. Sabia sempre que ainda dormia enquanto percorria cada uma das salas abandonadas onde a única brisa, suspendendo eu a respiração, só podia vir da sua respiração compassada. Creio que só eu conseguiria ver a subtil ondulação dos velhos cortinados.  As janelas estreitas que acompanhavam as salas dispostas em volta de um único claustro desnivelado eram os únicos vultos a acompanhar-me na espiral da nossa solidão. Quando a deixava, no quarto do topo, depois de sentir que os seus olhos amainavam depois da tempestade de algum pesadelo, saía para uma pequena varanda sobre o recinto interior e descia a primeira volta da espiral - o único local onde conseguia olhar o céu e, onde, por vezes, sentia o vento e a chuva que escorria até ao fundo, acompanhando o meu percurso até à entrada da primeira sala, junto à grande porta de entrada, por onde se escoava por um orifício. Por vezes, encostava o ouvido ao pequeno ostíolo e parecia ouvir de novo a respiração dela, sabendo bem que não podia ser, porque se a água desaparecia por ali, não ia, com certeza, em direcção ao quarto mais alto. Mas o ritmo parecia o mesmo. Regular, como um peito cansado e sem esperança. Depois, subia de novo pelas salas que se sucediam em corredor, até à útima, no alto. Deslizava então para o seu lado e parecia que nunca a tinha conhecido de outra forma. Queria que se virasse para mim, me olhasse nos olhos e me contasse o sonho que tivera enquanto me levantara da cama. Mas dos seus sonhos só me falava através da pele que se arrepiava contra o meu ventre frio e pela suspensão imediata da sua respiração, como se estivesse em pânico. Afastando-me, novamente a respiração parecia retomar o seu caminho circular.

Foi num dia em que me preparava de novo para me colocar ao seu lado, observando os movimentos ondulatórios sob os seus olhos fechados, em que a toquei e de novo lhe senti o corpo a retrair-se de frio, que a dor me obrigou a sair, não a fosse acordar e perturbar com as convulsões que me obrigavam a torcer o corpo em todas as direcções. Da varanda sobre o pátio interior só conseguia ver as nuvens, adivinhando chuva, vagamente, muito vagamente, iluminadas pela aurora. Rastejando pelo chão, sentia o meu corpo a rasgar-se contra as irregularidades da pedra do chão. Assim me arrastei até ao fundo da mansão negra, onde, por uma fresta da grande porta, consegui ver os restos abjectos do meu corpo ainda pendentes, como estandartes esfarrapados sobre o corpo desmembrado de um soldado. Acometido por uma febre insuspeitada, que parecia tomar-me conta das veias inflamadas, voltei a subir as salas, na fúria silenciosa com que arrancava, como podia, cada pedaço de carne putrefacta que teimava em crescer insidiosamente em volta de um novelo de angústia e calor crescente. As paredes manchavam-se de sangue escuro, e o chão, atrás de mim, estendia uma passadeira triunfal, escarlate. Quando cheguei junto dela, estava exausto, sujo, escorrendo visco e podridão. A porta da varanda batia com o vento e deixava entrar água em salpicos. Saí e deixei a água escorrer por mim, esperando ficar desfeito, diluído, até desaparecer pelo orifício no fundo do claustro em espiral.

Quando parou de chover, já o sol tinha nascido. Levantei-me, fraco, mas decidido a não descer a espiral húmida. Inverti o percurso habitual e entrei na câmara onde ela continuava o seu sono de décadas. Ajoelhei-me ao seu lado e toquei-lhe na face. Não se retraiu. Como se fosse pele da sua pele. Não era um corpo estranho. Beijei-a. Abriu os olhos, desvelados, escuros, mas brilhantes, ofuscados pela luz que entrava pela porta da varanda. Sorriu, por breves momentos, sobressaltando-se logo a seguir. "O dragão?", perguntou, enquanto se entregava aos meus braços e se preparava para levantar. "Matei-o", disse, apontando para as escamas ensanguentadas que juncavam o caminho através das salas.

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