sábado, 22 de agosto de 2015

Marce, de Gláucia Lemos


Em Marce,  a escritora baiana Gláucia Lemos, atraída pelos sons e pelo ritmo selvagem e encantatório da natureza diabólica do ser humano, tem a coragem de se adentrar pelo corredor escuro do egoísmo humano. Mas, tal como a personagem que dá nome ao romance, prefere deixar algumas portas fechadas. Em termos formais, o enredo não dispensa algumas revelações com sabor a literatura de cordel do século XIX ou às comédias de Beaumarchais e, tal como nestas, a rede humana de coincidências e laços de sangue insuspeitos são reveladores de uma ordem social de aparências que se vai esboroando perante novos caminhos de liberdade.

É um romance onde a um sentimento prevalecente de libertação feminista se contrapõem momentos de medo, omissão e cobardia. Uma cobardia supersticiosa já entrevista num espelho que serve de subtítulo ao livro. A cobardia de quem vê alguém morrer devido ao nervosismo negligente da autoridade e aceita placidamente a injustiça com um mero amuo de despeito, a cobardia de quem suspeita de um crime pavoroso e prefere fingir que tudo está bem. Uma cobardia que varre para debaixo do tapete tudo o que é inconfortável e remete Marce, esta personagem central de um bildungsroman no feminino, para um desconcertante estatuto de ambiguidade. Exilada no limbo de uma praia remota, tanto paraíso quanto inferno. Ou, como se diz a certa altura, num paraíso a que se acede por meio dos caminhos do inferno - quando, bem diz a doutrina, quem entra no inferno não pode acalentar a esperança de lá sair. E Marce não sai do inferno começado nos seus amores falhados. A verdade deste romance - que cada romance só vale pelas verdades que encerra nas suas estudadas mentiras poéticas - está exatamente no caráter ambíguo de uma personagem que não é um modelo de virtudes. Primeiro ingénua, à conta da paixão dedicada a um torpe espécime de macho, Marce evolui ao longo da narrativa, torna-se mulher liberada - expressão utilizada desdenhosamente por outra personagem não menos liberada no que diz respeito a costumes e à expressão tendencialmente  plena da sua sexualidade. Tendencialmente porque a alegoria é clara: só através da perda se podem atingir patamares mais elevados de maturidade. Quando, na narrativa começada in media res, Marce se volta a olhar no espelho chinês dos maus presságios, devidamente ornamentado com um ouroborus, símbolo da autofecundação e da solidão enquanto elemento definidor do eu, o que Marce encontra é aquilo que falta, aquilo que se perdeu. Aquilo que, perdendo-se, a completa enquanto mulher. Marce, personagem central de um bildungsroman, como já disse, não evolui ou se educa através do confronto com teorias e sábios gurus, mas através da perda. À medida que o seu mundo vai estreitando, paradoxalmente, maior é a linha de costa que os seus pés descalços percorrem em direção ao desvelar dos medos e das superstições, abrindo-se-lhe as portas dos simples que a acolhem num meio onde a consciência do mundo ainda se encontra em estado de fábula, numa névoa onírica que parece sair de outro livro de Gláucia, Luaral.

Mas se Marce é, ao nível estrutural, o centro nevrálgico desta história, a família de onde foi desterrada é a personagem moral. Uma família que é, acima de tudo, uma instituição social que, ainda dando os primeiros passos no que diz respeito à aceitação das liberdades individuais, está ainda minada pelo pensamento puramente egoísta e enformado na luta pelo poder. O amor é apenas um capricho ao qual se cede, dada a força inexorável da pele contra pele e a sua transmissão de um subtil veneno onde não há lugar para paixões amenas ("A química da pele é uma porta escancarada para esse vírus miserável que une as criaturas."). Cada ato de amor, para cada elemento daquela família que se desmorona é, também, um ato de conversão. Uma mudança de fé.

Em resumo, um livro que, de acordo com a receita de Stendhal, é um espelho ao longo de um sinuoso caminho. Um espelho que tanto reflecte como se nega a tudo abarcar. Porque somos assim. Incompletos e limitados pelas molduras e pelos agouros e presságios, bons ou maus, com que enquadramos o nosso olhar.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Luís Vargas I

Um tal de Luís Vargas, obviamente do PS, ou que, sendo de esquerda é burro o suficiente para só bater em metade da coligação que governa o país, tem, porém, a inteligência de dizer coisas que são óbvias. Talvez não seja inteligência. Talvez seja apenas esperteza e vontade meritocrática de substituir o coiso dos corações... O.… Edson Ataíde. Pois.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Acróstico

Finalmente olhaste para mim,
Olhos nos olhos,
De sorriso rasgado.
E
Ignorando
Vénias,
Ouviste-me,
Simplesmente.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

INE

Os números sobre as pessoas:

Idade, residência, camas e violência,

Vão sendo lançados.

E os cidadãos, apesar da logística,

Com bons resultados em estatística,

Entalados em desemprego, inflação, dívida,

E uma alta taxa de alfabetização

E baixa literacia,

Encavalitando-se nos números,

Fazem democracia.

Lançam fundamentadas opiniões.

Os números não mentem.

- Ai que não mentem!

- Não mentem, não!

As palavras sim. Especialmente

As que vêm encavalitadas em números,

Embrulhadas em papel de opinião.

Depois, há a Razão.

E essa só interessa a quem dos números

Da mortalidade, subnutrição, obesidade

E falta de educação,

Não faz outro escrutínio

Ao consumo de alumínio, cimento e alcatrão,

Que não o que não se deduz

De um incalculável cagalhão.